18 de março de 2009

A velha e a menina.

Parece extremamente natural, a fala, o gesto, a menina olhava significativa para ali, mas era de grandeza natural, porém cada gesto, passo e pensamento, eram premeditados, tudo pensado de antemão, nada nela era tão natural assim, era tudo uma questão de esperteza!...Muito sabida a menina, esperta e sagaz, continuou a vida toda, fingindo ser uma espécie rara de pessoa original, mas não passava de uma quantidade absurda de informações catalogadas, significados resolutos e manejo de personalidade, enganou cada ser humano frágil que passou por ela, com sua falsa naturalidade, mas tudo isso só para não ser mais um no mundo redondo, só para não passar lenta e despercebida como a maioria, teve pequeno sucesso , morreu quase comum, mas nem tão comum assim, em seu enterro vários seres mortais a visitaram, há quem diga que imortais passaram por lá também, mas não se comprova a presença, a menina deitada no caixão vestida de branco, muito, muito branco, parecia apenas uma menina, uma mulher, senhora velha de cãs, morta e entupida de algodão, mas lembrava a cada olhar a menina pensativa e esperta, que enganou todo mundo, no fim morreu mesmo, não sobrou nada a não ser os pentes, e os dentes, que ela guardava na gaveta, para que não percebessem que era preciso pentear os fios cinzentos, só tiveram conhecimento de seus postiços dentes no dia do enterro, sobrava o dente no copo, e ela deitada nua, e o moço limpava, a mulher nua e fria, esse foi outro deslize, mas só o moço a viu, ela ainda era íntegra no olhar morto e pálido, esquálido e vazio, ela nem estava ali, tinha ido faz tempo, só era carcaça, mas ela não havia pensado nisso também, o corpo ali quase fedia , quase mosquejava, pútrido e fétido, daí seria absoluta certeza da grande mulher que ela não foi, no fim termina tudo podre e igual, mas de menina, moça, usava aquele perfume doce, eficaz e singelo, era delicado, mas o olhar era forte, mirava com vontade cada ser, cada espectador, mas sempre com fingida naturalidade, pousava as mãos significativas no joelho da perna que cruzava a outra, sentia-se normal, fazia cara de normal, e não era, ninguém se assume normal na frente de si mesmo, todos se percebem estranhos um dia, esquisito, e ela era assim como todos, mas disfarçava com grandeza, mentia muito bem, era excelente atriz, como poucas, assumiu postura e leveza, mas era forte, forte como a elefanta da manada, mas ninguém percebiam as rugas as veias finas de velha, a aparência esverdeada, e a morte se anunciando no cansaço do olhar, por isso, claro, ninguém notou que era velha e boa candidata para morrer, e por isso talvez choravam bobos no velório e no enterro, e antes e depois de cada um desses, o enterro e o velório, choraram mais um pouco, sua braveza e total domínio da própria alma, foi eficaz na hora do choro, mas quem não chora em velório, deve-se acrescentar o fato que se chora até um pouco mais, na morte da tonta e boba, da desleixada e descontrolada, retorna-se a dúvida do sucesso e beneficio de ser firme e singular, como denotava a velha menina, não passava de uma mulher fraca e insegura, mas isso quem diz são as fotografias, que manipulavam o olhar certeiro do espelho, para um olhar triste, e melancólico, de alguém que sempre teve trabalho consigo mesmo, sempre se ocupou com os grampos, com a goma, com o brinco de pérola, e sobrava o pescoço murcho e rugoso, a orelha com o dobro do tamanho, e a testa marcadíssima, tudo deitado com as mãos em descanso de morto, no caixão, e cheirava quase mal.