24 de setembro de 2010

Eu coloco água para ferver em uma chaleira vermelha antiga, no fogo azul de propano, o vapor mancha o vidro da casa gelada em um subúrbio aconchegante, enquanto isso uma velha acaricia seu gato cinza a ronronar, no seu apartamento na cidade, sua vizinha assiste ao último filme da noite, um homem de óculos tenta pegar um taxi qualquer, e o mendigo dorme em um beco com sua garrafa vazia.

A chaleira apita, o gato pula assustado e um carro passa com velocidade acima da média, levantando uma folha suja de jornal velho, enquanto isso, passam os comerciais da madrugada.

Os comerciais são rápidos, e quase não dá tempo de voltar da geladeira, o filme é repetido, mas é importante revê-lo, o homem de óculos lê a notícia antiga, “O fim do mundo se aproxima”.

O gato brinca com uma bola de lã sem saber disso, “o fim”, quem diria (penso eu com o chá pronto).

Uma correnteza de sangue invade a rua e o homem tenta não sujar seus sapatos italianos, o bêbado mendigo se incomoda com tanta umidade e se retira cambaleante e molhado.

O gato e o novelo tornam-se um só, e a velha tenta com ele fazer um suéter de gato, “ficaria muito bem em Clarinha” pensa a velha solitária.

Pena que Clarinha já não se apresenta mais no diminutivo, e mantém vida adulta no exterior á mais de vinte anos, a velha provavelmente se esqueceu disso, e vai se lembrar antes de achar suas agulhas de tricô, ou esquecerá tudo e voltará a afagar a barriga do novelo.

O fogo azul de propano tenta possuir mais do que deveria, e invade as cortinas da cozinha, piorando as cores do subúrbio, porém, o deixando mais quente do que antes.

A gorda já dorme na poltrona, e dessa vez ela não teve tempo para lamentar sua vida infeliz chorando, e se iludindo que o pranto é apenas por causa do filme, não que comedias românticas sejam emocionantes ao extremo, a ponto de abalar nossos dutos lacrimais, mas tudo se explica de acordo com ela, o fim de qualquer coisa é tão...triste, talvez.

As correntes de sangue já alcançam as barras também italianas da calça do latino de óculos, mas ele ainda empunha seu guarda chuva velho a esperar agora, um barco de preferência.

O novelo de gato expõe furos, e já esta seco, não sobrou sangue, e ele fede, e veja só onde estavam as agulhas, no pobre gato confundido novamente com um novelo, dessa vez foi fatal.

Vou ter de prepara o enterro, logo depois de eu achar um extintor ou um bote, o fogo já alcança quarteirões inteiros, e uma pá não será o suficiente para tantos defuntos.

19 de setembro de 2010

Tudo

Uma garota sabe que em breve perderá sua visão, sente triste em seu coração, que não mais verá as coisas da terra, por um lado chora e acredita que sentirá falta das cores que o dia tem quando chove, da cor da grama nova e da beleza das pessoas, mas ela também tenta acreditar que não sentirá falta de nada, ela confabula em sua mente, que já viu tudo o que se precisava ver, e que não precisará mais ver as coisas ruins do mundo.
Ela já viu tudo, as árvores, as folhas de salgueiro dançando na brisa, um homem matar seu melhor amigo e vidas que se acabaram antes de serem vividas.
Ela viu quem ela um dia já foi, e sabe quem ela será no futuro, não há nada mais para se ver.
Eu tento lembrá-la, que ela ainda não viu elefantes, reis ou o Peru!
Ela me diz que esta satisfeita em dizer que teve coisas melhores para fazer.
Eu pergunto:
- e sobre a China? Você viu a Grande Muralha?
- Todas as muralhas são grandes, se o telhado não cair! Diz ela com o olhar embaçado.
- E o homem com quem você se casará? A casa que você vai morar com ele?
- Para ser franca, eu realmente não me importo.
Ela joga algumas pedrinhas no lago com um sorriso doce. E eu pergunto:
- Você nunca foi às Cataratas do Niágara?
Ela me responde olhando em meus olhos:
- Eu vi água, e água é sempre a mesma, já vi tudo. – ela insiste.
- E a Torre Eiffel, ou o Empire State? São lugares românticos, e você ainda não os viu, você combina com lugares assim. Eu disse isso meio tímido e olhando para os lados.
- Eu me lembro como meu coração batia acelerado no meu primeiro encontro, é igual. Diz ela sensível e simples.
- Você nunca verá a mão de seu neto quando ele brincar com seu cabelo, e não vai ver seus cabelos ficarem grisalhos.
- Para ser franca, eu realmente não me importo, eu vi tudo, vi a escuridão, vi o brilho de uma pequena faísca. Eu vi o que eu quis ver e vi o que eu precisei ver. Isso é o bastante, querer mais, seria ganância. Eu vi o que eu era e eu sei o que eu serei, eu vi tudo, não há mais nada para se ver.
Foi quando eu entendi, senti meu coração chorar raivosamente, eu não queria aceitar, por que eu a amo, e quando ela disse isso a amei muito mais. Foi quando eu disse:
- Você viu tudo e tudo viu você, você sempre pode rever em sua mente, como uma pequena tela, a luz e a escuridão, o grande e o pequeno. Não precisa de mais nada, você viu o que você era e sabe o que você será. Você viu tudo, não há mais nada para se ver, e eu te amo.